Com documentos, ônibus velhos e com defeitos viajam livremente pelo país.
Desembargador que concedeu liminar classificou a prática como indevida.
Uma empresa de ônibus que transporta milhares de passageiros e que, há seis meses, se envolveu num acidente que matou 36 pessoas é responsável por colocar veículos antigos e que não têm condições de fazer viagens longas para transportar passageiros livremente pelo país.
A empresa não tem autorização dos órgãos que regulamentam o transporte de passageiros, então entrou na Justiça parar ter o direito de fazer viagens de um estado para outro. Em 2009, a empresa conseguiu uma liminar, que é uma autorização judicial provisória, concedida pelo desembargador Daniel Paes Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da primeira região, em Brasília. A decisão autoriza a empresa a transportar passageiros por cinco linhas, que cruzam o país.
Veja o vídeo da Matéria:
Ivonaldo Santana, gerente da empresa chamada de TCB, Transacreana ou Transbrasil, encontrou um produtor do Fantástico que se passou por dono de um veículo antigo. Ele oferece duas opções: pagando R$ 7 receberíamos uma cópia da liminar e poderíamos pegar passageiros em pontos clandestinos. Esse documento não poderia ser vendido e deveria beneficiar somente a empresa. A outra opção, que seria sair de uma rodoviária, fica ainda mais cara. Na rodoviária, o preço cobrado é de R$ 10 mil por carro.
Além disso, é necessário fazer um contrato, como se a empresa estivesse alugando um ônibus e sendo responsável por ele. No entanto, isso não ocorre na prática. “A liminar não é objeto de negociação. Isso é um absurdo, isso é uma ilegalidade”, afirmou Sônia Haddad, superintendente de serviços de transporte de passageiros da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Saiba mais
No estado de São Paulo, os ônibus da empresa só têm autorização pra começar as viagens a partir de Cubatão. Mas, na rodoviária da cidade, o guichê deles está fechado. A empesa começa as viagens a partir da Rodoviária do Tietê, em São Paulo.
“O ponto inicial dessa liminar é a cidade de Cubatão. Não poderia sair em hipótese nenhuma de São Paulo”, afirmou Haddad.
O homem que se apresenta como gerente da empresa diz que entrega uma pasta com o “kit liminar”. Caso a fiscalização pare o veículo na estrada, a pasta contém todos os documentos necessários, inclusive a cópia da liminar.
Veículos apreendidos
Na primeira quinzena de maio, a Polícia Rodoviária Federal fez uma operação de combate ao transporte irregular passageiros na Bahia. No total, 63 veículos foram apreendidos e, entre eles, 23 andavam irregularmente com a liminar da Transbrasil. Nenhum dos motoristas parados pela polícia é funcionário da Transbrasil.
Em dezembro, um ônibus com 42 passageiros que rodava com a liminar da Transbrasil tentou ultrapassa um caminhão na BR-116, quando bateu em uma carreta que seguia na pista contrária. Segundo a polícia, 36 pessoas morreram.
Em Buíque, Pernambuco, vivia a maioria das vítimas. “Deus me deu coragem que eu vi meus quatro filhos, todos os quatro, dentro do caixão”, afirmou Marta Maria da Silva.
Um dos motoristas do ônibus era José Da Silva, 33 anos, que morreu. Ele recebia R$ 500 por viagem. “Ele é funcionário de JM, lá de Buíque, que é o dono do ônibus. Não estava registrado”, conta a viúva Maria Rejane Lopes, que não sabe se vai conseguir receber a pensão do INSS. “Ele sustentava minha filha e eu. Eu lhe pergunto: eu vou fazer o que da minha vida agora? As pessoas que erraram que arquem com as consequências”, diz.
O dono do ônibus envolvido no acidente, José Milton dos Santos, reconheceu que pagou à Transbrasil para ter a liminar. Ele disse que o seguro das 36 vítimas fatais do acidente será pago, mas não informou o valor. Ele segue vendendo passagens.
Viagem
Produtores do Fantástico viajaram em um ônibus que roda com a liminar da Transbrasil. Os ônibus da Transbrasil também começam a viagem da rodoviária de Osasco - na grande São Paulo - o que a liminar não permite. A empresa que administra esse terminal e o do Tietê informou apenas que respeita as ordens judiciais.
É de Osasco que os produtores partem para Picos, no Piauí: uma viagem de 2.600 quilômetros. E o ônibus roda como se fizesse a linha Cubatão-Fortaleza, uma das autorizadas pela justiça.
Depois de 10 horas de viagem, o ônibus onde está nossa equipe simplesmente parou na estrada por causa de um problema na mangueira de óleo. Volta para estrada e, após dez minutos, o óleo segue vazando.
Uma hora depois, uma mangueira estourou e está difícil usar o freio. Com tantos problemas, a viagem - que deveria durar 39 horas - teve um atraso de quatro horas. São dois motoristas, que chegam a trabalhar 12 horas seguidas. Em vários momentos, o ônibus andou acima do limite de velocidade.
Depois de 43 horas na estrada, o ônibus chega a Oeiras, no Piauí, na garagem de uma empresa de fretamento. Como a passagem comprada era para Picos, o restante da viagem é improvisado de carro.
Explicações
No Tribunal Regional Federal da primeira região, o desembargador que concedeu a liminar à Transbrasil - e que hoje é vice-presidente desse tribunal - preferiu não gravar entrevista. Em nota, Daniel Paes Ribeiro disse que não tinha conhecimento do aluguel da liminar e classificou a prática como abjeta e indevida.
Segundo ele, a liminar tinha o objetivo de assegurar a continuidade da prestação do serviço de transporte rodoviário de passageiros. Ele informou que vai pedir à Polícia Federal que investigue todas as denúncias apresentadas nessa reportagem.
A Agência Nacional De Transportes Terrestres (ANTT) diz que já tinha alertado o desembargador sobre a venda da liminar.
O dono da Transbrasil já foi acusado de crimes como formação de quadrilha e estelionato. Foi prefeito de Ouro Preto do Oeste, Rondônia, e teve o mandato cassado, em 2007, por usar o cargo em benefício da empresa dele. Irandir Oliveira negou a participação na venda do “kit liminar”.
“Nenhum tipo de comercialização. O que existe é que nós arrendamos veículos para operar no nosso nome. Nós que administramos. Os funcionários, carros, manutenção, seguro, é tudo Transbrasil. Já denunciamos inclusive em várias delegacias, pedindo o apoio da polícia para investigar muitos ônibus que colocam o nome Transbrasil nos ônibus, ou TCB, e saem fazendo viagem pelo Brasil afora”, disse.
Ele diz ainda que Ivonaldo Santana, que se apresentou como gerente - não é funcionário da Transbrasil. “Tem que chamar a polícia e prender. É esse tipo de ações de alguns vigaristas que estão fazendo, principalmente ali na região de São Paulo.”
Procuramos Ivonaldo Santana, que não quis gravar entrevista. Por telefone, continuou falando como funcionário da empresa, mas, agora, disse que não faz negociações ilegais. Segundo a ANNT, a Transbrasil já foi autuada mais de cinco mil e quinhentas vezes. As infrações chegam a R$ 16 milhões.
Fonte: http://g1.globo.com/
0 comentários:
Postar um comentário