O transporte urbano em metade das capitais do país não é licitado. Levantamento feito pelo GLOBO em órgãos de Transportes nas 26 capitais e no Distrito Federal aponta que o setor que foi o pivô das manifestações de junho — iniciadas justamente pelo aumento da passagem de ônibus — continua, em metade das principais cidades, sendo operado por empresas que ganharam permissões e autorizações décadas atrás, mas que nunca passaram por uma licitação para regular o sistema.
Mesmo em muitas capitais que fizeram licitação — que permite que o poder público regule melhor o serviço e garanta seleção dos melhores preços —, o processo é recente. No Rio, a primeira licitação foi feita em 2010.
Além da falta de licitação, o transporte urbano no país enfrenta, ainda, o fato de que muitas empresas continuam a contratar com o poder público apesar de terem dívidas milionárias. Dever quase R$ 3 bilhões não impede que empresas continuem a vencer licitações no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte: O GLOBO levantou, na lista de inscritos na dívida ativa da União, utilizando CNPJs de empresas e CPFs de empresários de transporte urbano, que 49 empresas e 17 empresários do ramo devem R$ 2,8 bilhões. A título de comparação, isso equivale a 342 vezes o valor pago para investimento, no primeiro semestre deste ano, dentro do orçamento de 2013 do Ministério dos Transportes.
SP: lucro de r$ 400 milhões por ano
As regiões Sul e Nordeste têm, cada uma, apenas uma capital com esse serviço licitado: Curitiba e João Pessoa. No Centro-Oeste, todas as capitais têm licitação. E, no Norte, há três com licitação.
No Sudeste, todas as capitais têm licitação, exceto Vitória. No município do Rio, com quatro consórcios, a licitação chegou a ser alvo do Tribunal de Contas do Município (TCM), que abriu investigação sobre suposta formação de cartel. À época, foi divulgado que Jacob Barata Filho aparecia como sócio de sete empresas, e que, ao todo, 12 empresários tinham participação em mais de uma empresa. Mas o TCM arquivou o processo e, agora, uma CPI foi aberta na Câmara Municipal.
— Não há concentração. A pessoa física com maior participação possui 5,18%. Se o critério for por grupos familiares, tem 11% — diz Lélis Teixeira, que preside o Rio Ônibus, Sindicato das Empresas de Ônibus da cidade do Rio.
— Vimos que não há cartel, mas agora o TCM vai apurar questões nebulosas como custo, frequência dos ônibus, fiscalização. E dois auditores vão acompanhar a CPI — conta Thiers Vianna Montebello, presidente do TCM do Rio.
Em São Paulo, a licitação realizada em 2003, que venceria este ano, foi prorrogada por até um ano; a prefeitura cancelou a nova licitação que ocorreria em 2013, para estudar novo modelo do sistema, que deve ficar pronto até ano que vem. Deve ser lançado só após ser concluída a CPI que ocorre hoje na Câmara municipal.
— A ideia é esperar sua conclusão justamente para haver discussão. A qualidade do serviço não é boa, é preciso debate — diz o secretário municipal de Transportes de São Paulo e presidente da SPTrans, Jilmar Tatto (PT-SP), deputado licenciado.
Uma das opções estudadas é fazer com que a prefeitura passe a adquirir a frota; as empresas só executariam o serviço. Outra opção é o município passar a operar quantidade e distribuição de linhas e horários, e as empresas continuariam a cuidar só de mão de obra e manutenção.
A única das 8 áreas da cidade que não deve entrar na nova licitação (pelo contrato ter sido feito em 2007, valendo até 2017) é a 4 — justamente, segundo o próprio secretário, a que “pior opera”, “com maior número de reclamações”. Uma das empresas da 4, a Ambiental, é do Grupo Ruas, que possui outras, como a Campo Belo, na 7, e a Cidade Dutra, na 6.
— São CNPJs diferentes, mas de um mesmo grupo. Pode ser considerado concentração — diz o secretário Tatto.
Segundo a SPTrans, a margem de lucro dos operadores do sistema é de 6,78 % sobre a arrecadação — o que equivale a cerca de R$ 400 milhões por ano.
No DF, só em 2009 o Ministério Público determinou que os ônibus fossem licitados. Mais de mil linhas estavam nas ruas.
— O setor implantava as linhas que interessavam, autuações não tinham efeito, havia conivência de agentes públicos e operadores — diz o secretário de Transportes, José Walter Vazquez Filho. — Até dezembro, será 100% da frota contratada.
Mas a licitação no DF fez com que o MP apurasse a vitória das viações Piracicabana e Pioneira, da família Constatino.
— Serem irmãos não caracteriza grupo econômico — diz o secretário.
Por e-mail, Maurício Moreira, da Pioneira, diz que “as empresas não têm sócios em comum e nem dirigentes comuns”. Representante da Comporte Participações, que engloba a Piracicabana, diz que “os irmãos sócios da Piracicabana não são sócios das irmãs sócias da Pioneira”. A Piracicabana nega ter sido beneficiada por ter contratado o escritório Guilherme Gonçalves & Sacha Reck Advogados Associados; Sacha é filho de Garrone Reck, diretor da empresa contratada pelo DF para fazer o edital de licitação: “O edital é público”.
Entre as capitais sem licitação, Salvador deve lançar um edital em setembro. Hoje, as empresas operam por permissão precária. A última licitação do serviço lá foi há 40 anos — é de 1973. Em 2006, o MP passou a exigir nova licitação.
— Com permissão, a empresa diz quantos passageiros transporta. Com licitação, a prefeitura tem condições de auditar os ônibus e exigir o que contrato estabelece — diz o presidente do TCM-RJ.
‘Regularidade fiscal é indispensável’
Na lista de devedores de R$ 2,8 bilhões levantada pelo GLOBO, e na qual incluem-se dívidas previdenciárias e tributárias, estão empresas e empresários da cidade do Rio e parte da Região Metropolitana; da cidade de São Paulo e do ABC — única das 5 áreas da Região Metropolitana da capital não licitada, operando por permissão —; de BH; e do DF. O total de R$ 2,8 bilhões corresponde a 32 vezes o valor pago até agora ao programa “Mobilidade urbana e trânsito” do Ministério das Cidades.
Pela lei de licitações, as empresas precisam ter regularidade fiscal para participarem do processo. Segundo Luiz Roberto Beggiora, procurador da Fazenda Nacional e coordenador-geral da Dívida Ativa da União, a inscrição em dívida ativa leva, 75 dias depois que o débito é comunicado, à inscrição também no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do governo federal — o que acarreta “impossibilidade” de participar de licitações, além de fazer com que o inscrito torne-se réu em ação de execução fiscal.
— A regularidade fiscal e trabalhista é indispensável para participação em licitação. O que muitas empresas fazem é recorrer à Justiça e, como o resultado da ação judicial ainda não saiu, ou se conseguem uma liminar, participam. Ou então, o sócio de alguma empresa cria outra, com outro CNPJ, sem dívidas, e então participa dessa forma — analisa Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-SP e especialista em Direito Administrativo.
No Rio, a Rio Ita, por exemplo, que opera em São Gonçalo, deve à União R$ 19,9 milhões. Está entre as três empresas mais reclamadas este ano na ouvidoria do governo estadual, junto com a Auto Ônibus Fagundes e a Viação União. As linhas do Estado do Rio, incluindo a Região Metropolitana, têm permissão até 2015; uma decisão da 5ª Vara de Fazenda Pública determinou que o Estado do Rio licite o serviço.
— Não é fácil fazer licitação que envolve milhares de linhas e muitas empresas. Mas não é impossível — diz Julio Lopes, secretário de Transporte do Estado do Rio.
— Desconheço que haja empresas em dívida ativa — diz Lélis Teixeira, do Rio Ônibus. — Quando foi feita a licitação na cidade, todas foram obrigadas a provar regularidade. O que pode haver são cancelamentos ou parcelamentos deferidos.
Carlos Roberto Osório, secretário municipal de Transportes do Rio, diz que a prefeitura verificou a regularidade fiscal das empresas quando a licitação foi realizada.
Segundo o presidente da BHTrans, Ramon Victor Cesar, o endividamento das empresas “só é problema se afetar a capacidade de operar o serviço”:
— O que não é o nosso caso em BH.
O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (Setra-BH) afirma que todas as empresas de BH estão em dia com a União, pois “a discussão do débito na Justiça não aparece no sistema” da Fazenda.
Tatto, de SP, diz que as empresas têm de apresentar as certidões exigidas:
— Dever não é pecado no Brasil. Muitas empresas que constam como endividadas estão renegociando a dívida.
O secretário de SP diz, porém, que pode ser “temerário” o contrato com empresas que estejam sendo executadas judicialmente.
O Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss) afirma desconhecer que empresas estejam inscritas em dívida ativa. Por e-mail, diz que “a discussão de eventuais débitos no âmbito do Judiciário é direito garantido, e por si só, não significa irregularidade fiscal, inclusive se considerada a hipótese de expedição de certidões positivas com efeitos negativos”. Sobre a existência ou não de concentração, afirma que “a participação de pessoa física ou jurídica nos contratos atende aos parâmetros estabelecidos na legislação”.
Sobre a dívida de empresas do ABC, o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Setpesp) diz que as empresas, pertencentes ao grupo Baltazar José de Souza, estão em recuperação judicial desde 2012.
Fonte: O Globo
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