Cantadas de passageiros fazem parte da rotina, também marcada por amizades, palpites e preconceito
Atitude. O time feminino da empresa 1001: as amigas Elessandra (à esquerda) , Rosane (centro) e Laudinete Guilherme Leporace
NITERÓI - Respiração pausada, movimentos circulares e muito equilíbrio. Os exercícios de tai chi chuan executados ao longo de 12 anos por Kátia Braga são a chave para que ela não se estresse com passageiros rabugentos ou com as temperaturas estratosféricas que encara devido à proximidade do motor do ônibus. Todos os dias, antes de sair de casa, ela pratica a arte milenar chinesa que ensinava até o projeto para o qual trabalhava ser extinto. Sem possibilidade de continuar na profissão, Kátia fez uma mudança radical: resolveu, há três anos e meio, virar motorista de ônibus.
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— Ainda enfrentamos muito preconceito. Há duas empresas em Niterói que não contratam mulheres de maneira alguma. É triste, mas são comuns os casos de passageiros que desistem de embarcar quando veem mulheres ao volante — diz Kátia. — Apesar de tudo, adoro o que faço. Muitas pessoas que viajam de ônibus acabam virando amigas dos motoristas, dão até presentes. Criança, então! Tem um menino de 3 anos que, todos os dias, me pede para buzinar quando ele desce.
O encantador poder feminino
Nessa relação motorista-passageiro, há quem acabe se excedendo. Kátia conta que, muitas vezes, quem se senta no primeiro banco ganha o apelido de “instrutor” por passar boa parte da viagem dando pitacos sobre a direção. Mas não falta quem queira ficar ali para fazer galanteios. Kátia elaborou uma teoria: muitos homens têm fetiche por mulheres que dirigem ônibus.
— Acho que eles enxergam as mulheres que controlam o veículo como figuras poderosas. Já falei sobre isso com a minha psicóloga — conta Kátia, arrancando risos da colega Sueli Donato.
Viviane Alves, também colega de Kátia na Ingá, concorda. Ela lembra que um rapaz que trabalhava numa padaria virou seu fã e sempre lhe dava docinhos.
— Um fiscal me contou que ele deixava vários ônibus passarem só para pegar o meu. Dizia que, se ganhasse numa loteria, me contrataria para ser sua motorista particular — revela Viviane, filha, irmã e neta de motoristas que, quando era pequena, transformava tampas de panela em volantes durante brincadeiras.
Viviane afirma não dar bola para cantadas, mas se mostra vaidosa enquanto dá expediente. De unhas pintadas, usa luvas para não ficar com calos e, ainda assim, forra o volante com uma capa cor-de-rosa. Além disso, aproveita os engarrafamentos para passar creme hidratante.
Muitas viagens acabam em casamento
A história de vida de Rosane Ferreira prova que a teoria de Kátia faz sentido. Motorista de uma linha da 1001, ela passava todos os dias em frente a uma loja na qual um funcionário estava perdido de amor por ela. Esperto, ele descobriu os horários que o ônibus de Rosane parava num ponto próximo e ia até lá pelo menos cinco vezes por dia.
— Ele inventava as desculpas mais estranhas para andar tanto de ônibus. Depois de um ano e meio nessa novela, ele seguiu viagem até o ponto final e pediu meu telefone — lembra Rosane, que está casada com seu admirador há quase seis anos.
Depois de tentar várias profissões, Laudinete da Conceição resolver apostar suas fichas na carreira de rodoviária. Começou como cobradora e, há nove anos, passou a ocupar a cadeira de motorista. Dirigir ônibus nunca a intimidou: ela é enfática quando diz que “é mil vezes mais fácil dirigir um monstrão de 15 metros do que um carro”.
— A diferença entre um ônibus e um carro de passeio é grande, e posso dizer que minha posição é muito melhor! Tenho uma visão muito mais ampla, uso um retrovisor pelo qual vejo a lateral inteira do veículo. Na verdade, só percebo como ele é grande depois que eu desço. Aí, sim, falo “nossa, Laudinete, você estava levando tudo isso aí’ — brinca ela.
E a velha história de que homem dirige melhor do que mulher? As moças garantem que se trata de uma grande mentira. Seus chefes fazem coro, dizendo que, ao volante, elas são muito mais cautelosas com os outros veículos do que seus pares masculinos, além de respeitarem mais as regras de trânsito e esbanjarem paciência para lidar com os passageiros.
Elessandra Nascimento diz que nada a faz mais feliz do que receber um elogio ou um agradecimento. Ela virou motorista de ônibus há 22 anos, e, atualmente, dirige entre Niterói e municípios da Região dos Lagos. Seu sonho? Entrar na rota dos interestaduais.
— Quero muito fazer a linha Rio-São Paulo. Deve ser muito emocionante dirigir naquela estrada enorme. O problema é que não existem alojamentos femininos para o pernoite. As empresas ainda estão se adaptando às mulheres — diz Elessandra.
Kátia mais uma vez se inspira no tai chi chuan para comentar os percalços da profissão.
— Temos que respirar fundo, porque nem tudo é perfeito. Se fosse, pintaríamos os ônibus de rosa e trabalharíamos com cobradores de olhos azuis e mais de 1,70 metro de altura — diz ela, com o apoio das outras meninas.
Fonte: http://oglobo.globo.com/
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